Ei,
Dom Quixote!
--- Cadê o ontem! – grito, para a figura estática
à minha frente. Ele está montado imponentemente
em um cavalo, alto e magro, quase esquelético,
de orelhas eretas e sem cor definida. Está
sombreado pelo reflexo do sol às suas costas,
escuro como uma estátua inerte de praça.
--- Onde está Dulcinéia? – volto a gritar,
olhando-o com curiosidade.
--- Encontrou-a? – insisto, depois de algum tempo
sem resposta.
A figura permanece do mesmo jeito, sem nenhum movimento,
ignorando por completo as minhas perguntas. Até
os seus olhos negros, com pequenos rasgos de branco
da órbita ocular, parecem fazer parte de uma
holografia muda. É quase que um quadro negro
à minha frente. Tento vislumbrar naquela imagem
sem vida, alguma coisa que fizesse lembrar ao galhardo
cavaleiro de outros tempos. Famoso e cantado em todas
as línguas.
Por
detrás dele, fortemente iluminando o caminho
imaginário à frente do cavaleiro, brilha
o sol, seu maior cúmplice, companheiro de dias
ferventes. Aquela luz é responsável
por manter o intrépido guerreiro longe dos
meus olhos e mudos à minhas perguntas. Mas
o ele está lá, com a lança erguida,
pronta para matar o primeiro dragão que encontrar,
mesmo que hoje, em pleno século vinte e um,
eles estejam extintos.
---
Onde está o teu fiel escudeiro, Sancho, de
tantas batalhas? – volto a perguntar. --- Onde? –
insisto novamente.
A
figura, por um momento, deu a impressão que
iria responder, pois vislumbrei um quase que imperceptível
movimento nas orelhas eretas do seu cavalo. Ele também
estava ali, apoiando o seu senhor, ajudando-o, não
sei porque, a manter-me distante. Dava quase que para
ouvir o bufar do ar saindo pelas suas narinas abertas.
Parecia cansado, o animal. Definitivamente , ele não
gostava de mim. A recíproca era verdadeira.
Não o via com bons olhos, pois sempre levava
o meu cavaleiro para o mais distante possível
das minhas perguntas.
Agora
que passou algum tempo, desde que fiz a última
pergunta, ainda sem resposta, vejo que aos poucos
a luz que antes escondia o rosto do galhardo guerreiro,
agora começava a esmaecer sob uns fios de luz
e iniciavam o descortinar da escuridão sobre
a face negra. O primeiro sinal de vida a aparecer
foram nos olhos. Pareciam que aqueles dois pedaços
de carvão, negros e penetrantes, queriam vazar
a escuridão e chegar até onde eu estava,
como se tivessem, finalmente, enxergando o seu dragão.
Olhos da morte! Num primeiro instante olhei para os
lados, preocupado com aquele olhar que, certamente,
deveria estar endereçado ao outro ser vivente,
e não eu, pobre e perdido frangalho humano.
Mas não havia mais ninguém além
de mim, por aquelas bandas.
O
sol havia se levantado furtivamente por detrás
do impávido guerreiro, e agora estava esparramando
a sua luz lá do alto, deixando-o claramente
visível. A imagem do guerreiro num instante
ficou bem definida. Levei um susto enorme. Conhecia
aquele rosto! Aqueles olhos, agora sem a força
da escuridão, pareciam velhos e cansados, exatamente
como os meus, que há pouco havia vislumbrado
no espelho.
Conhecia
bem aquele antigo guerreiro. Até os ossos que
sobressaiam por baixo da sua armadura, descuidada
e amassada, eram meus. E, mesmo que o meu corpo de
hoje, rechonchudo e de barriga saliente, esconda um
ser que não sou eu, reconheço aquela
face. Não sou, na realidade, nem este gordo
desleixado e barrigudo, que está plantado à
frente do andarilho, nem aquele decrépito guerreiro,
sem vitórias na vida. Acho que preciso buscar
o meu “eu”, e matar o meu dragão em outras
terras. Definitivamente não sou nem esse nem
aquele velho doidivanas à frente.
Será?
Olho para as minhas mãos, onde começam
a aparecer os primeiros sinais de rugas ainda disfarçadas
com o esticar dos dedos. Lembro de uma frase que meu
pai havia dito há muito tempo atrás:
“--- O homem quando “enxadreza” a nuca, quando mostra
os primeiros caminhos de rato, está velho”.
Palavras de alguém que já se foi há
tanto tempo, mas que ainda hoje, como muitas outras
tiradas certeiras, continua provando a sua veracidade.
As vezes, só para confronta-lo mais uma vez,
como todo filho que gosta de competir com o “velho”,
as coloco em prática. Nunca errou uma. “---
O chapéu caiu, o peão tá no chão!”,
- disse, ele, doutra vez. Milésima vez correto.
Mas, voltando às mãos, não sei
porque elas parecem estar inquietas, desassossegadas,
diante da confusão dos meus pensamentos. Certamente
descobriu que da mesma forma que estão, cheias
de caminhos perdidos, a nuca segue o mesma estrada
e a máxima do meu “velho”, mais uma vez será
confirmada. Estou velho.
O
tempo passou e nada fiz e, pior, o meu maior prêmio,
o meu presente de fim-de-vida, a minha amada Dulcinéia,
nem sei como está. A única coisa que
sei, é que numa hora sou um, ao mesmo tempo
em que sou outro, ou não sou nenhum dos dois!
Coisa de louco!
Os olhos do cavaleiro continuam a fuzilar em minha
direção. Agora já não
tenho receio deles. Sei que estão com a razão.
Mas não vejo ódio ou rancor naqueles
olhos. Vejo perdão, compreensão e solidariedade.
Mesmo sendo o fruto de todo o sofrimento pelos quais
ele passou, vejo nos seus olhos lágrimas de
redenção. Tudo isso que está
sendo revelado e reunido em um só lugar, prova
a minha derrota! Como ele atrás de tantas batalhas
sem vencer nenhuma. Sou o fracasso dos meus sonhos!
Abaixo
as minhas vistas novamente para as mãos e as
vejo paradas, seguras uma na outra, aguardando o resultado
do confronto. O velho guerreiro, arqueado pelos anos,
alquebrado de todas as maneiras da vida, apeia lentamente
do seu obediente cavalo, e caminha com passos lentos
em minha direção. Ouço o tilintar
das suas latas, sacolejando ao bamboleio dos seus
passos, e vejo no rosto daquela figura, uma expressão
de dor, de alguém que já viu as dores
do mundo e sabe que existem poucos remédios
para elas. Principalmente por enfermidades que nós
mesmos criamos. Ele estava bem pertinho que dava para
ouvir o som da sua respiração cadenciada.
Este som me fez voltar à realidade.
Estou
na minha sala, sozinho e perdido em meio aos meus
pensamentos, como faço quase sempre. O dia
se foi há muito tempo e a escuridão
tomou conta da sala. Fico olhando para o teto sem
ação, deixando o tempo tomar conta de
tudo. Relembrei a imagem do velho guerreiro e me vi
embutido naquela armadura, mesmo espremido com toda
a minha banha, estava lá dentro dela. Ao sentir-me
no corpo do galhardo guerreiro, vi que andei durante
estes anos todos de minha vida, como ele, a derrotar
moinhos de vento imaginários, sem saber que
o nosso maior inimigo esta dentro de nós mesmos.
E
a minha Dulcinéia, onde estará? – me
pergunto. Mas sei a resposta. Está lá
em cima, em nosso quarto, dormindo os seus sonhos
sem saber ou sem conseguir entender as batalhas que
enfrentamos para manter o nosso amor. Acho que ajudei
a matar os sonhos dela também, ao faze-la atravessar
estes mundos ao meu lado, deixando o futuro em outras
estradas. Tudo isso em nome do amor.
Vejo
num relance todos os momentos eternos de carinhos
que tivemos em muitos anos. Dos pequenos gestos e
afagos sinceros com os quais alimentamos o nosso amor
durante anos. Era tão fácil abrir os
olhos pela manhã, sentir o calor do seu corpo,
saber da sua presença física e espiritual
ao meu lado. Saber o quanto lotamos para poder desfrutar
destes momentos pela eternidade. Hoje estamos aqui,
mas é somente uma parte do sonho que ainda
teima em ficar, não desiste de fazer renascer
das cinzas os nossos ideais e torna-los reais. Nestas
horas vejo os sorrisos dela, iluminando o rosto juvenil,
os cabelos louros, preso entre os meus dedos, num
momento mágico. Sentir que ela, deitada em
meu colo, velando pelo nosso amor, nos fazia viajar
por muitos mundos. O que aconteceu? Não sei.
Mas a verdade é cruel e por mais que queiramos
dourar a pílula, sabemos que o tempo esvaiu-se.
Não volta mais.
Aí,
procuro ser justo comigo mesmo, assumindo os meus
erros, minhas falhas levado por devaneios insustentáveis,
nesta aventura sem fim. O que mais dói e machuca
é descobrir que os caminhos perdidos, por onde
eu e a minha amada, a minha Dulcinéia, seguimos,
nos colocou a cada dia um pouquinho mais distante
do outro. Naquela trilha lá atrás, não
sei bem onde foi, ela, cansada de derrotas e envolta
em suas próprias dúvidas, começou
a se distanciar de mim.
Quando
foi que começamos a caminhar em lados separados
da estrada? Não sei. Só sei que os nossos
olhos já não vêem as mesmas coisas,
os mesmos moinhos desafiantes, as mesmas batalhas!
Talvez, como disse, o culpado de tudo isso seja eu
mesmo. O “cavaleiro” de comando, o guerreiro invejável
de outros tempos, que hoje não consegue fazer
florir no rosto da amada, o sorriso de ontem.
Subi
os degraus da escada, com passos leves para não
acordá-la, e abro a porta do quarto silenciosamente,
tentando não fazer barulho. Olho a figura de
cabelos louros deitada em nossa cama, encolhida como
um bebê, dormindo placidamente, alheia aos nossos
desencontros. Procuro ver no seu rosto os sonhos da
sua noite, e não consigo. Tenho vontade de
tomá-la em meus braços e acalentá-la
como nos velhos tempos, e garantir mais uma vez, que
tudo vai mudar. Que vamos ser novamente “uno”, seres
de um mesmo destino, mas sei que será quase
que impossível.
Não
sei por onde anda o meu outro “eu”, aquele esbelto
e incansável guerreiro que enfrentou muitos
dias das nossas vidas, sem medo de ser derrotado.
Unir a ele, este corpo gordo e cansado, juntamente
com o imbatível velho guerreiro, para que juntos
possamos enfrentar os desatinos que vida nos colocou.
Sem encontrá-lo, nunca poderei fazer a união.
Eu, gordo e desleixado, e velho Dom Quixote, guerreiro
de todas as batalhas, e ele, a esperança de
todos os sonhos.
Acaricio
os seus cabelos da minha amada, dou um leve beijo
em sua face macia e começamos mais um dia.
Quem sabe ainda conseguiremos encontrar os nossos
caminhos em alguma encruzilhada da vida, aí
pela frente. É caminhar para ver.
Valdir
R. Silva
12/Fevereiro/2006
18:36hs
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O
amor não ocupa lugar, não ocupa espaço,
não custa nada, não deve nada, não
pergunta nada, não reclama. O amor simplesmente
vive o amor! |
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